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domingo, 19 de agosto de 2007

Curiosidades históricas: cocaína e quinino 

Palmira F. da Silva, no DE RERUM NATURA:

A planta Erythroxylon coca tem origem na América do Sul, nas regiões altas dos Andes. A palavra «khoka», «a árvore», consta do léxico dos Aymara, uma etnia andina conquistada pelos Incas em data incerta.
Para os Incas, a coca era uma planta sagrada, um presente do Deus Sol (Inti), apresentada ao mundo por Manco Capac, o primeiro Inca, o Sapan Intiq Churin ou O Único Filho do Sol. Na realidade, existem evidências da utilização ritual da coca no que hoje é o Peru desde há mais de 4500 anos, nomeadamente em rituais funerários.
A coca integrava, para além da farmacopeia local, uma série de rituais religiosos e o seu uso era restrito aos sacerdotes e àqueles que o Inca a tal permitia, normalmente a elite. Os incas eram sepultados com uma provisão de folhas de coca, não se sabe se para abastecer os justos no paraíso inca, Hanan Pacha, ou os pecadores na sua versão do Inferno, Ukku Pacha.

Na farmacopeia inca figurava um medicamento feito com base na casca de um arbusto da família
Rubiaceae, que Lineu baptizou em 1742 de Cinchona. A descoberta ocidental das virtudes do quinino no tratamento da malária estão envoltas em lendas urbanas, e tanto quanto saiba foram descritas pela primeira vez pelo padre jesuíta Antonio de la Calancha, que escreveu na sua Crónica moralizada del orden de San Agustín en el Perú, de 1633:
«Uma árvore cresce, que eles chamam árvore da febre, na região de Loxa, cuja casca tem cor de canela. Quando transformada em pó, juntando-se uma quantidade equivalente ao peso de duas moedas de prata, e oferecida ao paciente como bebida, ela cura febre e ... tem curado miraculosamente em Lima.»
Os jesuítas foram assim os grandes divulgadores da casca peruana, conhecida na Europa como casca dos jesuítas, introduzida na Europa pelos bons ofícios do padre Bernabé de Cobo, que referi a propósito da sua inestimável obra sobre as plantas e animais do Novo Mundo (e não só), de que já mencionei a descrição do uso ritual do cacto São Pedro, huachuma ou wachuma.
Sebastiano Bado, na «
Anastasis Corticis Peructiae» de 1663, atribui o crédito pela divulgação da cinchona à esposa do vice-rei do Peru, Ana de Osório, condessa de Chinchón. Segundo Bado, depois de ser curada de malária por um remédio feito com pó da casca da árvore que hoje tem o seu nome - na grafia italiana de Bado -, Ana de Osório distribuiu o remédio milagroso, a que chamariam «pó da condessa», e teria ainda levado consigo uma grande quantidade da casca de cinchona ao regressar a Espanha. Esta atribuição é contestada desde a descoberta em 1930 de um diário do conde de Chinchón, escrito por Don Antonio Suardo, seu secretário. O diário relata que Ana de Osório, a primeira condessa de Chinchón, morreu pelo menos três anos antes de o seu marido ser indicado vice-rei do Peru por Filipe IV. A segunda condessa de Chinchón, Francisca Henríquez de Ribera, nunca sofreu de malária nem regressou a Espanha, tendo morrido em Cartagena.

Mas se há dúvidas a quem agradecer a divulgação da casca que permaneceu o medicamento de eleição no tratamento da malária até à II Guerra Mundial, não há dúvidas sobre as suas benesses, especialmente desde a descoberta em 1820 de um processo de extracção do fármaco pelos químicos franceses Pierre Pelletier e Joseph Caventou.

Em relação à coca, a situação inverte-se. Isto é, sabemos como foi divulgada a planta na Europa e não temos dúvidas sobre os malefícios acarretados pela utilização da cocaína extraída dessa planta.

Depois de Francisco Pizarro ter conquistado para a coroa espanhola o império Inca em 1533 , os padres que o acompanharam consideraram que o uso ritualista e/ou medicinal da folha era a explicação do insucesso das campanhas de evangelização. Assim, em 1551, o Conselho Eclesiástico de Lima declarou ser a coca «uma planta enviada pelo demónio para destruir os nativos». Os eclesiásticos do Novo Mundo mudaram rapidamente de ideias sobre a demonização da coca, porque, como escreveu o bispo de Cuzco, Vicente Valverde, na «Carta del Obispo del Cuzco al Emperador sobre asuntos de su iglesia y otros de la Gobernación de aquel país, Cuzco 20 de marzo de 1539», «a coca vale nesta terra o peso do ouro». Segundo Valera, citado neste artigo de Ángel Muñoz García, o dízimo da coca tornou-se a principal fonte de rendimento da Igreja local, mais concretamente, «la mayor parte de la renta del Obispo y de los canónigos y de los demás ministros de la Iglesia Catedral del Cuzco es de los diezmos de las hojas de cuca».
Os espanhóis constataram que a produção dos escravos índios nas minas de ouro e pedras preciosas baixava sem o uso de coca. Em 1569, um édito de Felipe II de Espanha (e, infelizmente, I de Portugal), declarou o acto de mascar folhas de coca como um hábito essencial à saúde do índio e alargou a utilização de coca a toda a população.
Em finais do século XVI, Nicolas Monardes tentou introduzir a planta em solo europeu mas as virtudes da coca não foram reconhecidas como as do tabaco e, posteriormente, da batata. A coca manteve-se exclusiva na América do Sul durante muito tempo. Em 1750 foram enviadas com sucesso as primeiras plantas para a Europa pelo botânico Joseph Tussie e apenas um século depois, Paolo Mantegazza e Albert Niemann conseguiram extrair cocaína das folhas. Na mesma altura, o corso Angelo Mariani apresenta ao mundo o vinho com o seu nome, o primeiro de muitos vinhos de coca que os finais dos século XIX viram florescer.

Vin Mariani era um vinho tonificante comercializado a partir de 1863 por Angelo Mariani. O vinho era obtido por decocção de folhas de coca em vinho Bordeaux, ou seja, continha um razoável teor de cocaína, equivalente ao da sua rival sem álcool, a Coca-Cola. O vinho era muito apreciado pela elite europeia da época, por exemplo, os papas Leão XIII e Pio X eram ambos consumidores regulares do Vin Mariani. Leão XIII, que aparece neste poster promovendo a bebida, atribuiu-lhe mesmo uma medalha de ouro do Vaticano.
O sucesso da bebida, vendida como um tónico de qualidades terapêuticas, e um livro chamado «Uber coca» (sobre a cocaína) de um jovem médico do Vienna General Hospital, de sua graça Sigmund Freud, contribuiram de forma decisiva para a divulgação da nova droga.
No livro, publicado em 1884, Freud defendeu o uso terapêutico da cocaína para tudo e mais umas botas, como «estimulante, afrodisíaco, anestésico local, assim como indicado no tratamento de asma, doenças consumptivas, desordens digestivas, exaustão nervosa, histeria, sífilis e mesmo o mal-estar relacionado a altitudes». Freud utilizou cocaína para tratar a dependência de morfina do médico Ernest von Fleischl Marxow, morfinómano na sequência da amputação de uma perna. Os resultados do «tratamento» de Marxow assim como o exemplo de Karl Koller, que introduziu a cocaína como anestésico em cirugias oftálmicas no ano da publicação do «Uber coca» e a quem os efeitos da auto-experimentação propiciaram a alcunha Coca-Koller, fizeram Freud concluir que se calhar a «droga milagrosa» não o era de facto e em 1892, Freud publicou uma continuação de «Uber coca», agora muito crítica da utilização de cocaína.
Entretanto do outro lado do Atlântico, o uso anestésico de cocaína descrito por Koller era investigado por William Stewart Halsted, que viria a ser conhecido nos Estados Unidos como um dos pais da cirurgia moderna. John Styth Pemberton apresentou em 1886 apresentou um concorrente do Vin Mariani mais ao gosto dos princípios religiosos da sociedade americana do século XIX, a sua bebida com cocaína (cerca de 60 mg por garrafa de aproximadamente 240 ml) mas sem álcool, descrita como um tónico para o cérebro e nervos a que chamou Coca-Cola - e que deixou de ter cocaína em 1906. Nesta página do departamento de Psicologia da Universidade de Buffalo podem ver outras utilizações da cocaína em finais do século XIX, princípios do século XX. A utilização legal não terapêutica da cocaína e outras drogas terminou na Europa pelo tratado de Haia em 1912 e dois anos depois nos Estados Unidos pelo Harrison Act.

Mas não terminou a história da cocaína, embora o desenvolvimento de drogas de síntese, muita mais seguras e sem efeitos secundários que as tornem atractivas para utilização «recreativa», tenham tornado obsoleta a utilização terapêutica da cocaína. A cocaína é um alcalóide que actua principalmente a nível dos circuitos de «recompensa» do cérebro, aumentando por inibição da sua recaptação os níveis de dopamina e de outros neurotransmissores, como a norepinefrina e serotonina. A cocaína, tal como a heroína, actua ainda sobre o sistema natural de produção de opióides no corpo, por exemplo a dinorfina.
O consumo mundial de cocaína aumentou muito a partir dos anos 70 sendo, segundo um relatório europeu, a droga mais traficada a nível mundial, a seguir à cannabis herbácea (marijuana) e à resina de cannabis (haxixe).
O uso abusivo de cocaína é assim um problema cada vez maior nas sociedades modernas, um flagelo social que assumiu proporções catastróficas com a introdução do crack em meados da década de 80. Ao recordar a história da coca, é quasi impossível não pensar que o Conselho Eclesiástico de Lima acertou ao demonizar - na acepção laica do termo, claro - a planta mas se enganou naqueles que ela tinha potencial de destruir...


Peliteiro,   às  22:00

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